quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012













Neste dia em que escrevo, milhares de gregos manifestam-se um pouco por todo o país, e em especial na capital Atenas, contra o jugo financeiro imposto pelo capital. Promovido pela Alemanha, na liderança dos “povos ricos do norte”, o processo de desagregação da democracia grega está em curso. Vale a pena olharmos para a Grécia de forma a perceber aquela que será indubitavelmente a realidade portuguesa dentro de meses, caso o marasmo coletivo continue.


Na verdade, o processo de desmantelamento da democracia começou bem antes da chamada crise das dívidas soberanas que teve como primeiro alvo a Grécia, seguida de outros países como Portugal, Itália ou Espanha. O definhamento da democracia começa precisamente quando o sistema de representatividade democrática atinge o seu estado de maturação ideal, convergindo para uma bipolarização da política e do governo assente em dois partidos, que se vão alternando no poder sem que a isso corresponda uma mudança nas políticas implementadas, sempre com o objetivo na destruição do modelo social. Neste sentido, a criação do Euro veio dar o alento que faltava. A partir desse momento,  e sem que as consequências da adoção de uma moeda criada à imagem da Alemanha mas madrasta para países mais pobres, com um mercado interno pouco dinâmico e vivendo da exportação de bens de baixo valor, tenham sido devidamente debatidas e escrutinadas, abriu-se caminho a um futuro que, para alguns, como o economista Nouriel Roubini, estava escrito nas estrelas.

Primeiro que tudo é necessário pensar a criação do euro sob a perspectiva de uma moeda coxa, sem política monetária comum. Isto, para além da falta de competitividade que uma moeda forte como o Euro veio exacerbar - sobretudo sentida nos países que produzem bens de pouco valor acrescentado - como no caso português - cujos bens dificilmente podem ombrear em matéria de preços com outras economias dos chamados países emergentes, que gozam de menores custos de produção, à base de um modelo de produção que na Europa apenas vislumbramos nos romances de Charles Dickens, mas que poderão vir a tornar-se o nosso futuro próximo – e da impossibilidade de determinar a política cambial – desde sempre o recurso mais usado pelos países que em crise necessitavam, a dado momento, de responder face ao avolumar da dívida externa – são dois fatores que concorrem à compreensão do atoleiro a que chegamos.

Depois há a mediatização da política e da sociedade. Seria impossível levar a cabo estas mudanças sem convencer os cidadãos, os pobres do sul, que a culpa é deles. No filme de 1941 de Orson Welles, “Citizen Kane”, há uma frase que pode resumir o contributo dos media, cada vez mais concentrados em impérios de comunicação, para uma sociedade que tem vindo constantemente a ser incentivada a deixar de pensar: “As pessoas vão acreditar naquilo que eu disser para elas acreditarem”. Pois bem, não acreditem naquilo que vos dizem nos noticiários e que vem escrito nos jornais. É difícil, por certo. O constante papaguear de que os gregos como, aliás, os portugueses, são aqueles preguiçosos dormitando à sombra de uma qualquer bananeira, gastando à tripa-forra e vivendo acima das suas possibilidades é o pensamento dominante. Na verdade, segundo dados oficiais da OCDE, os gregos trabalham cerca de 2119 horas por ano, seguidos dos portugueses com 1719 horas, bem longe dos alemães com cerca de 1300 horas anuais. A diferença está  nos modelos de produção e desenvolvimento que os países foram escolhendo ou foram sendo obrigados a escolher. No caso grego, assistiu-se ao falsear constante da verdadeira situação das contas públicas com a ajuda preciosa desse espírito santo das finanças – está por todo lado - que é o Goldman Sachs e que já havia estado na base do crime do Subprime norteamericano. Ao mesmo tempo que o país se afundava, os políticos mentiam ao povo e às instituições europeias. Tudo corria bem. Em Portugal, um economista medíocre e um político indigente deu o pontapé de saída de um modelo de desenvolvimento voltado à terceirização do país, à destruição do tecido produtivo, ao abandono da prática agrícola, ao desmantelamento da frota pesqueira e à construção da maior rede viária da europa  - relativamente à área – em simultâneo com a destruição de redes alternativas de transportes, como a ferrovia, e, a pièce de resistance, o incentivo ao endividamento fácil, com especial preponderância na política imobiliária que sempre deu primazia à compra de casa própria em detrimento do mercado de aluguer pois era necessário continuar a estimular e apadrinhar esse magnífico clube dos patos bravos e de todas as promiscuidades que é a construção civil. Disto, pouco se fala quando falamos sobre como foi possível que, em 2012, a Europa ou o sonho da construção europeia se viria a tornar num verdadeiro pesadelo que agora é vivido pelas populações, colocadas entre a espada da usura e a parede da perda de direitos, no país em que cerca de 20% da população nunca conseguiu sair do limiar da pobreza e com tendência a aumentar, como facilmente se percebe. Todos os dias ouvimos demasiadas expressões como “ ajuda externa” sem ouvirmos o contraditório de que essa “ajuda” não o é, senão um excelente negócio para a Alemanha e para o FMI que só em juros do empréstimo usuário a Portugal irão arrecadar mais de 30 mil milhões. Ouvimos e lemos a palavra “resgaste” que não é senão um sequestro que visa a alteração das condições e dos equilíbrios laborais que ameaça indelevelmente a já parca proteção dos trabalhadores, com a facilitação dos despedimentos e da flexibilidade dos vínculos. Entram-nos pela casa diariamente os discursos radicais dos subservientes do costume, situacionistas desta neoliberalização premente, que “não há dinheiro” para bolsas de estudo, para aumentar salário mínimo que foi acordado em sede de concertação social, mas que nunca foi cumprido, que é necessário alienar aquela que é, porventura, a melhor criação do Portugal democrático, um Serviço Nacional de Saúde universal e de qualidade, uma rede de transportes públicos eficiente que a todos sirvam independentemente da sua condição ou profissão. Que temos de abdicar de tudo isso. Em nome de quê? Do aumento da dívida que ocorreu desde que a intervenção externa da troika começou. Sim, é verdade, os nossos governos foram obrigados a pedir uma intervenção externa para conter o sobreendividamento, mas a dívida externa aumento ao invés dos efeitos expectáveis que seriam, em condições normais e em face daquilo que nos foi vendido, a sua diminuição.

A camuflagem da realidade é hoje um dos nossos maiores problemas. Porque enquanto for possível aos nossos governantes esconder a realidade recorrendo a uma classe jornalística amordaçada pelas mãos de poderosos e obscuros interesses, é possível que se mantenha o mesmo processo de cegueira, mais ou menos voluntária, e que impediu que se tomassem medidas que parassem, de uma vez por todas, o rumo irresponsável que nos trouxe até aqui.

Chagados a este momento, a única saída para os problemas que enfrentamos, o encontrar de novas soluções económicas, não pode deixar de passar por um novo paradigma de apreensão de modelo económico sustentável, mas sobretudo, por uma mudança que deve passar por cada de um nós, enquanto indivíduos, que se refletirá na sociedade. A participação cívica não pode limitar-se a partidos políticos ou a modelos de sindicalismo gastos e anacrónicos. O modelo de “democracia representativa”, percebemos agora,  não nos serve. A representação caberá a todos e a cada um individualmente. A participação cidadã daí decorrente terá de ser influenciada por uma consciencialização individual de que não podemos deixar nas mãos de outrem o mundo que queremos criar. Não basta votar em eleições de quatro em quatro anos. O advento dos “governos tecnocratas” não eleitos ou dos governos com pouca margem de arbítrio face à imposição de políticas por parte de organismos externos vieram apenas confirmar o carácter caduco da chamada democracia representativa. É urgente a transformação do real pela ação diária e contínua, e pela exigência da transparência e de verdade nos métodos. É urgente o florir das praças ocupadas. Das saídas à rua. De uma educação para o protesto cívico e responsável, fruto da consciencialização de que aquilo que nos estão a impor não é solução mas antes o problema, de que não iremos ultrapassar este momento, sem ficarmos mais pobres em direitos e em dignidade, se continuarmos a cooperar com o roubo generalizado que nos está a ser imposto. De que o momento é de viragem e constitui um ponto de retorno em relação a todas as conquistas que gerações anteriores, com inúmeros sacrifícios, foram capazes de ganhar para nós e para o nosso futuro. E esta é uma luta internacional. Da China à Grécia, do Chile aos Estados Unidos, de Portugal ao Egipto, a ditadura do dinheiro e da “financeirização” das vidas e das expetativas legítimas dos povos está a fazer o seu caminho alicerçada em instituições com uma agenda secreta de controlo mundial. Cesse-se das tentações nacionalistas ou protecionistas que é tempo da união de todos. Somos apenas um e não há lugar a divisões ou ódios. Perante uma globalização sem rosto, cruel e implacável que está a fazer o seu caminho e que leva vantagem em prejuízo da própria sustentabilidade do planeta, é hora de nos levantarmos e fazermos a nossa globalização assente nos valores que queremos preservar e consolidar, criando uma sociedade livre, justa e igualitária, anulando focos de repressão ou controlo.

P.S. – a emergência de novos movimentos sociais um pouco por todo o país fazem-me ter esperança numa mudança de rumo. Não uma esperança de fé, mas uma esperança real e legítima. Um desses movimentos é o Es.Col.A – Espaço Coletivo Autogestionado – que está presente no Alto da Fontinha, no Porto, ocupando uma antiga escola primária que havia sido votada ao abandono pela Câmara Municipal há cerca de 5 anos. Depois do sucesso do projecto social meritório ter sido evidente em poucos meses, o executivo voltou a ameaçar com despejo. A este assunto irei dedicar a próxima posta.


                                                                                                        Pedro M Lourenço

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