Neste dia em que
escrevo, milhares de gregos manifestam-se um pouco por todo o país, e em
especial na capital Atenas, contra o jugo financeiro imposto pelo capital.
Promovido pela Alemanha, na liderança dos “povos ricos do norte”, o processo de
desagregação da democracia grega está em curso. Vale a pena olharmos para a
Grécia de forma a perceber aquela que será indubitavelmente a realidade
portuguesa dentro de meses, caso o marasmo coletivo continue.
Na verdade, o
processo de desmantelamento da democracia começou bem antes da chamada crise
das dívidas soberanas que teve como primeiro alvo a Grécia, seguida de outros
países como Portugal, Itália ou Espanha. O definhamento da democracia começa
precisamente quando o sistema de representatividade democrática atinge o seu
estado de maturação ideal, convergindo para uma bipolarização da política e do
governo assente em dois partidos, que se vão alternando no poder sem que a isso
corresponda uma mudança nas políticas implementadas, sempre com o objetivo na
destruição do modelo social. Neste sentido, a criação do Euro veio dar o alento
que faltava. A partir desse momento, e sem que as consequências da adoção
de uma moeda criada à imagem da Alemanha mas madrasta para países mais pobres,
com um mercado interno pouco dinâmico e vivendo da exportação de bens de baixo
valor, tenham sido devidamente debatidas e escrutinadas, abriu-se caminho a um
futuro que, para alguns, como o economista Nouriel Roubini, estava escrito nas
estrelas.
Primeiro que tudo é
necessário pensar a criação do euro sob a perspectiva de uma moeda coxa, sem
política monetária comum. Isto, para além da falta de competitividade que uma
moeda forte como o Euro veio exacerbar - sobretudo sentida nos países que
produzem bens de pouco valor acrescentado - como no caso português - cujos bens
dificilmente podem ombrear em matéria de preços com outras economias dos
chamados países emergentes, que gozam de menores custos de produção, à base de
um modelo de produção que na Europa apenas vislumbramos nos romances de Charles
Dickens, mas que poderão vir a tornar-se o nosso futuro próximo – e da
impossibilidade de determinar a política cambial – desde sempre o recurso mais
usado pelos países que em crise necessitavam, a dado momento, de responder face
ao avolumar da dívida externa – são dois fatores que concorrem à compreensão do
atoleiro a que chegamos.
Depois há a
mediatização da política e da sociedade. Seria impossível levar a cabo estas
mudanças sem convencer os cidadãos, os pobres do sul, que a culpa é deles. No
filme de 1941 de Orson Welles, “Citizen Kane”, há uma frase que pode resumir o
contributo dos media, cada vez mais concentrados em impérios de comunicação,
para uma sociedade que tem vindo constantemente a ser incentivada a deixar de
pensar: “As pessoas vão acreditar naquilo que eu disser para elas
acreditarem”. Pois bem, não acreditem naquilo que vos dizem nos noticiários
e que vem escrito nos jornais. É difícil, por certo. O constante papaguear de
que os gregos como, aliás, os portugueses, são aqueles preguiçosos dormitando à
sombra de uma qualquer bananeira, gastando à tripa-forra e vivendo acima das
suas possibilidades é o pensamento dominante. Na verdade, segundo dados
oficiais da OCDE, os gregos trabalham cerca de 2119 horas por ano, seguidos dos
portugueses com 1719 horas, bem longe dos alemães com cerca de 1300 horas
anuais. A diferença está nos modelos de produção e desenvolvimento que os
países foram escolhendo ou foram sendo obrigados a escolher. No caso grego,
assistiu-se ao falsear constante da verdadeira situação das contas públicas com
a ajuda preciosa desse espírito santo das finanças – está por todo lado - que é
o Goldman Sachs e que já havia estado na base do crime do Subprime norteamericano.
Ao mesmo tempo que o país se afundava, os políticos mentiam ao povo e às
instituições europeias. Tudo corria bem. Em Portugal, um economista medíocre e
um político indigente deu o pontapé de saída de um modelo de desenvolvimento
voltado à terceirização do país, à destruição do tecido produtivo, ao abandono
da prática agrícola, ao desmantelamento da frota pesqueira e à construção da
maior rede viária da europa - relativamente à área – em simultâneo com a
destruição de redes alternativas de transportes, como a ferrovia, e, a pièce de
resistance, o incentivo ao endividamento fácil, com especial preponderância na
política imobiliária que sempre deu primazia à compra de casa própria em
detrimento do mercado de aluguer pois era necessário continuar a estimular e
apadrinhar esse magnífico clube dos patos bravos e de todas as promiscuidades
que é a construção civil. Disto, pouco se fala quando falamos sobre como foi
possível que, em 2012, a Europa ou o sonho da construção europeia se viria a
tornar num verdadeiro pesadelo que agora é vivido pelas populações, colocadas
entre a espada da usura e a parede da perda de direitos, no país em que cerca
de 20% da população nunca conseguiu sair do limiar da pobreza e com tendência a
aumentar, como facilmente se percebe. Todos os dias ouvimos demasiadas
expressões como “ ajuda externa” sem ouvirmos o contraditório de que essa
“ajuda” não o é, senão um excelente negócio para a Alemanha e para o FMI que só
em juros do empréstimo usuário a Portugal irão arrecadar mais de 30 mil
milhões. Ouvimos e lemos a palavra “resgaste” que não é senão um sequestro que
visa a alteração das condições e dos equilíbrios laborais que ameaça
indelevelmente a já parca proteção dos trabalhadores, com a facilitação dos
despedimentos e da flexibilidade dos vínculos. Entram-nos pela casa diariamente
os discursos radicais dos subservientes do costume, situacionistas desta
neoliberalização premente, que “não há dinheiro” para bolsas de estudo, para
aumentar salário mínimo que foi acordado em sede de concertação social, mas que
nunca foi cumprido, que é necessário alienar aquela que é, porventura, a melhor
criação do Portugal democrático, um Serviço Nacional de Saúde universal e de
qualidade, uma rede de transportes públicos eficiente que a todos sirvam
independentemente da sua condição ou profissão. Que temos de abdicar de tudo
isso. Em nome de quê? Do aumento da dívida que ocorreu desde que a intervenção
externa da troika começou. Sim, é verdade, os nossos governos foram obrigados a
pedir uma intervenção externa para conter o sobreendividamento, mas a dívida
externa aumento ao invés dos efeitos expectáveis que seriam, em condições
normais e em face daquilo que nos foi vendido, a sua diminuição.
A camuflagem da
realidade é hoje um dos nossos maiores problemas. Porque enquanto for possível
aos nossos governantes esconder a realidade recorrendo a uma classe
jornalística amordaçada pelas mãos de poderosos e obscuros interesses, é
possível que se mantenha o mesmo processo de cegueira, mais ou menos voluntária,
e que impediu que se tomassem medidas que parassem, de uma vez por todas, o
rumo irresponsável que nos trouxe até aqui.
Chagados a este
momento, a única saída para os problemas que enfrentamos, o encontrar de novas
soluções económicas, não pode deixar de passar por um novo paradigma de
apreensão de modelo económico sustentável, mas sobretudo, por uma mudança que
deve passar por cada de um nós, enquanto indivíduos, que se refletirá na
sociedade. A participação cívica não pode limitar-se a partidos políticos ou a
modelos de sindicalismo gastos e anacrónicos. O modelo de “democracia
representativa”, percebemos agora, não nos serve. A representação caberá
a todos e a cada um individualmente. A participação cidadã daí decorrente terá
de ser influenciada por uma consciencialização individual de que não podemos
deixar nas mãos de outrem o mundo que queremos criar. Não basta votar em
eleições de quatro em quatro anos. O advento dos “governos tecnocratas” não
eleitos ou dos governos com pouca margem de arbítrio face à imposição de
políticas por parte de organismos externos vieram apenas confirmar o carácter
caduco da chamada democracia representativa. É urgente a transformação do real
pela ação diária e contínua, e pela exigência da transparência e de verdade nos
métodos. É urgente o florir das praças ocupadas. Das saídas à rua. De uma
educação para o protesto cívico e responsável, fruto da consciencialização de
que aquilo que nos estão a impor não é solução mas antes o problema, de que não
iremos ultrapassar este momento, sem ficarmos mais pobres em direitos e em
dignidade, se continuarmos a cooperar com o roubo generalizado que nos está a
ser imposto. De que o momento é de viragem e constitui um ponto de retorno em
relação a todas as conquistas que gerações anteriores, com inúmeros
sacrifícios, foram capazes de ganhar para nós e para o nosso futuro. E esta é
uma luta internacional. Da China à Grécia, do Chile aos Estados Unidos, de
Portugal ao Egipto, a ditadura do dinheiro e da “financeirização” das vidas e das
expetativas legítimas dos povos está a fazer o seu caminho alicerçada em
instituições com uma agenda secreta de controlo mundial. Cesse-se das tentações
nacionalistas ou protecionistas que é tempo da união de todos. Somos apenas um
e não há lugar a divisões ou ódios. Perante uma globalização sem rosto, cruel e
implacável que está a fazer o seu caminho e que leva vantagem em prejuízo da
própria sustentabilidade do planeta, é hora de nos levantarmos e fazermos a
nossa globalização assente nos valores que queremos preservar e consolidar,
criando uma sociedade livre, justa e igualitária, anulando focos de repressão
ou controlo.
P.S. – a emergência de novos
movimentos sociais um pouco por todo o país fazem-me ter esperança numa mudança
de rumo. Não uma esperança de fé, mas uma esperança real e legítima. Um desses
movimentos é o Es.Col.A – Espaço Coletivo Autogestionado – que está presente no
Alto da Fontinha, no Porto, ocupando uma antiga escola primária que havia sido
votada ao abandono pela Câmara Municipal há cerca de 5 anos. Depois do sucesso
do projecto social meritório ter sido evidente em poucos meses, o executivo
voltou a ameaçar com despejo. A este assunto irei dedicar a próxima posta.
Pedro M Lourenço